Quatro em cada dez municípios que têm casos de Covid-19 ficam na região, não têm cobertura adequada de saneamento básico e nem estrutura para o tratamento de doentes

Na zona rural de Inajá, município do Sertão pernambucano a cerca de cinco horas da capital, Recife, o distanciamento social ainda não faz parte da rotina da agricultora Maria das Graças Ferreira. Aos 51 anos, Maria enfrentou uma viagem de 40 minutos por uma estrada de terra no último dia 14 até o centro da cidade, que ainda não tem casos confirmados do novo coronavírus, para entrar na fila de distribuição de alimentos. “Tive de vender um perfume para comprar a passagem e chegar aqui. Meus três netos me pedem uma bolacha e eu não tenho”, lamentou Maria, que vive com o marido, José Ferreira, de 67 anos, em uma residência de pau a pique, sem acesso a água encanada e rede de esgoto. Quando ficam doentes, Maria e José usam uma carroça puxada por um burro para chegar ao posto de saúde local. A pandemia global que já deixou mais de 150 mil mortos é percebida por dona Maria como mais um fator — mas não o único — que deixa a vida por um fio no Semiárido do Nordeste. “Já piorou. Antes eu passava na casa do povo e me ajudavam. Agora parece que ninguém tem condições de ajudar ninguém.”

Diante do avanço do novo coronavírus pelo país — uma em cada cinco cidades brasileiras já tinha casos confirmados até a última terça-feira —, a calamidade no Nordeste, uma região populosa e com indicadores socioeconômicos abaixo da média nacional, pode ser pior do que no restante do Brasil. Quatro em cada dez municípios com casos de Covid-19 já confirmados são nordestinos e reúnem problemas como falta de saneamento adequado, população em extrema pobreza e ausência de estrutura para tratar os doentes. Segundo o Ministério da Saúde, entre todas as capitais brasileiras, três do Nordeste — Fortaleza, São Luís e Recife — têm as maiores incidências do vírus para cada 1 milhão de habitantes. “Essas capitais têm alguns dos maiores fluxos internacionais do país. A densidade demográfica e a movimentação global de pessoas são fatores mais graves para o avanço do vírus do que a presença de locais desassistidos. É por isso que o distanciamento social tem importância central”, explicou o médico e cientista Miguel Nicolelis, coordenador do Comitê Científico do Consórcio Nordeste, grupo montado por governadores da região para lidar com a pandemia.

Além do acúmulo de casos nos grandes centros de estados como Ceará, Pernambuco e Bahia, a chegada da Covid-19 — a pequenos municípios e povoados marcados pela miséria no Semiárido nordestino — acendeu o alerta dos governos estaduais em razão da falta de hospitais e de estrutura básica para que a população pratique as medidas de higiene exigidas para combater o vírus. No interior nordestino, já chega a 182 o número de municípios com registros da Covid-19 que não têm leitos de UTI na rede pública, tampouco respiradores — essenciais para o tratamento de casos mais graves. “Com o coronavírus, tudo parou. Não chegam alimentos, os caminhões-pipa que levam água para as cisternas dos povoados pararam de circular e também falta transporte para ir às cidades. Estamos falando de povoados que ficam a 30, 40 quilômetros dos centros urbanos”, afirmou Alcione Albanesi, presidente da ONG Amigos do Bem, que tem percorrido a região, desde o último dia 8, com outros dez voluntários, para distribuir 60 mil cestas básicas, 20 mil kits de saúde e higiene e 25 milhões de litros d’água. Uma das cestas foi entregue a dona Maria das Graças no centro de Inajá.

Cidades consideradas socialmente vulneráveis no Nordeste já contabilizam cerca de 1.000 casos do novo coronavírus, segundo levantamento de ÉPOCA com base em um estudo do Grupo Mave, formado por pesquisadores da Fiocruz e da FGV, e nos dados compilados pelo site Brasil.IO. No Sertão, onde a incompetência de governantes em solucionar o problema da pobreza se mostra mais patente, relatos de escassez de comida e de preocupação com a chegada do vírus são cada vez mais frequentes. “Em 26 anos de trabalho no Sertão, nunca vi tantas pessoas com medo, assustadas e com fome”, disse Albanesi.

O grupo chefiado por Miguel Nicolelis elabora um plano para tentar garantir assistência de saúde a pessoas com sintomas da Covid-19 e reduzir o fluxo intermunicipal, um dos pilares do isolamento social para frear o ritmo de avanço do vírus para o interior. Para evitar o deslocamento de pessoas doentes para capitais e centros regionais, o comitê vem trabalhando na criação de brigadas de saúde que visitarão municípios mais desassistidos. Também está sendo desenvolvido um aplicativo para monitoramento e teleatendimento de casos suspeitos, sem que governadores e prefeitos abram mão de ferramentas menos inovadoras, como o uso de carros de som e propaganda em rádio, em razão dos hábitos e poder aquisitivo das populações dessas áreas.

O Semiárido, onde está a maioria dos municípios vulneráveis do Nordeste, cobre quase toda a área de estados como Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, além de parte do Piauí, do Maranhão e do norte de Minas Gerais. Mais de 27 milhões de pessoas — ou 12% da população brasileira — vivem nessas cidades. À época do último Censo, em 2010, apenas quatro dos quase 1.200 municípios do Semiárido apareciam acima da média nacional do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), de 0,727. Com baixos índices pluviométricos, a região também é uma das mais desafiadoras à lavoura de subsistência. Cerca de 30% dos brasileiros em situação de extrema pobreza vivem nas áreas rurais do Semiárido, segundo o IBGE.

José Ferreira, o marido de dona Maria das Graças e um dos 11 milhões de brasileiros dedicados à agricultura familiar, observa que o clima seco é um desafio não só à colheita, mas também ao acesso à água. Para conseguir encher um galão, ele e a mulher caminham até a casa de um vizinho e pagam R$ 15. Com o balde cheio, o passo seguinte é racionar o necessário para beber, cozinhar e higienizar o corpo. Segundo dona Maria, a última vez em que lavou roupas da família foi há duas semanas. Falta dinheiro para comprar sabão, ingrediente básico para o combate ao vírus.

Em nota técnica divulgada no último dia 2, o Grupo Mave classificou cerca de 5.500 municípios brasileiros em uma escala de vulnerabilidade de A até E, considerando fatores como IDH, acesso a saneamento e percentual de população em extrema pobreza. Dos 2.300 municípios nas faixas C, D e E, considerados os mais expostos em caso de contágio por Covid-19, segundo a pesquisa, 1.600 estão no Nordeste. Na região, quase metade dos domicílios (48,3%) não tem coleta de esgoto. Além disso, 30% das residências nordestinas não contam com distribuição diária de água, segundo o IBGE. “As sub-regiões do Nordeste que ainda não têm casos coincidem justamente com esses grotões mais internos dos estados”, observou Nicolelis. “Nesses municípios menores, a medicina da família é a nossa esperança. Um dos fatores que se entende que levou ao colapso da rede de saúde nos Estados Unidos, por exemplo, é justamente não ter um atendimento básico tão capilarizado. O número de médicos da família no Nordeste está na ordem de 15 mil. É preciso levá-los ao encontro dessas comunidades mais isoladas.”

No Ceará, estado que reúne 10% dos municípios socialmente vulneráveis do Nordeste, 4,8 milhões de pessoas não têm acesso a coleta de esgoto e 414 mil têm acesso a água no máximo três vezes por semana, segundo dados da Pnad Contínua, do IBGE. O governo estadual informou que realiza diariamente, em média, 590 testes swab — com maior precisão para detectar a Covid-19. A distribuição da rede hospitalar para atender casos graves ainda não acompanha a perigosa demanda. Dos 102 municípios cearenses que já tinham casos confirmados de Covid-19 até a última terça-feira, 57 não contavam com leitos de UTI pelo SUS, nem com respiradores.


Em todo o interior do estado de Pernambuco, há apenas 100 leitos dedicados a pacientes de coronavírus, 41 deles de tratamento intensivo. O estado lançou editais para a construção de hospitais de campanha no Sertão pernambucano, em Caruaru, Serra Talhada e Petrolina, o que deverá aumentar a capacidade do sistema público em mais de 100 leitos. “Apesar da concentração atual na Região Metropolitana do Recife, é fato que a Covid-19 vai chegar às outras regiões do estado”, reconheceu o governo, em nota. Em um desafio extra para garantir o distanciamento social e condições sanitárias, o interior pernambucano registrou fortes chuvas na última semana de março que causaram alagamentos e desalojamentos até em centros regionais como Caruaru, cidade de 360 mil habitantes. Com isso, centenas de famílias tiveram de ser alojadas em escolas, em condições que contrariam a necessidade de isolamento social.

No Sertão baiano, as alternativas de solução imediata do problema evocam estratégias precárias: a perfuração de poços e obras de saneamento básico em municípios onde não há esse tipo de estrutura. Segundo a última versão anual da Pnad Contínua, de 2018, quase 38% dos domicílios baianos não têm ligação com uma rede de esgotamento sanitário. Para acessar um hospital, será preciso deslocamento até cidades maiores. “O acesso dos pacientes à rede de saúde será viabilizado por ambulâncias e outros veículos do poder estadual, caso os municípios não tenham condições de assegurar o deslocamento”, disse o governo baiano, em nota.

Com a recessão econômica nos grandes centros, representantes do setor de saúde e assistentes sociais também têm redobrado a atenção com o retorno, especialmente para povoados e municípios pequenos, de trabalhadores que ficaram sem empregos na capital, muitos deles oriundos do mercado informal. Há a preocupação de que o movimento acabe, involuntariamente, sendo a porta de entrada para o novo coronavírus no interior, principalmente por meio de pessoas assintomáticas — isto é, que carregam o vírus sem manifestarem sintomas.

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