O funcionário público venezuelano Carlos Escalona, de 34 anos, tinha acabado de sofrer um sequestro relâmpago, no qual foi ameaçado e golpeado na cabeça por homens mascarados, quando recebeu um recado de seus superiores. “Talvez você tenha falado demais”, afirmou-lhe o chefe. O “aviso” era o começo de um processo que o levaria a deixar a Venezuela e se refugiar no Brasil.

A história de Escalona é uma entre as 48 mil que cruzaram a fronteira em Roraima. Ali, o próximo presidente do Brasil terá de desarmar uma bomba-relógio, cujo segundo final ainda não está definido. Com Nicolás Maduro reeleito para um novo mandato no país vizinho, não há sinais de que a crise econômica e política venezuelana vá amenizar nos próximos anos e o colapso do país pode aumentar o fluxo de refugiados na fronteira norte do Brasil.

Foi por ali que Escalona entrou no País. Ele trabalhava numa TV do Estado de Arágua, durante a gestão de Tareck EL Aissami, hoje vice-presidente e acusado de narcotráfico pelo governo americano. O irmão de Escalona é jornalista e trabalhava na sucursal venezuelana da CNN em espanhol. O governo suspeitava que ele passara informações para o irmão.

Hoje refugiado, morando em São Paulo em um pequeno apartamento na zona leste da cidade com a mulher, Marifer, Escalona contou que depois do episódio do sequestro relâmpago passou a sofrer cada vez mais ameaças veladas. Telefonemas, campanas e retaliações no trabalho faziam parte do cotidiano. Ele então passou a planejar a fuga.

O primeiro passo foi enviar os pais, já idosos, ao Equador. Era 2016 e a crise econômica venezuelana não tinha atingido os patamares de escassez e hiperinflação de hoje, mas a situação já era preocupante. Uma vez resolvida a questão, reuniu economias para comprar duas passagens de ônibus de Caracas para Manaus.

De lá, o casal decidiu ir para Fortaleza, cidade que conheceu quando viajou de férias ao Brasil na década passada. A vida no Ceará, no entanto, não deu certo. Jornalista de formação, Escalona tinha dificuldades em conseguir emprego.

Após meses no Nordeste, escolheram um novo destino: São Paulo. Na capital paulista, as dificuldades continuaram. “É nesse momento que você percebe que não é nada. Tive muita sorte de me ajudarem”, afirmou.

Com o auxílio da Missão Paz – grupo ligado à Igreja Católica que acolhe imigrantes em São Paulo – conseguiu emprego na cozinha de um hotel. Em paralelo, montou com a mulher um negócio de venda a domicílio de comida venezuelana orgânica. As arepas, disse Marifer, são o carro-chefe. “Os brasileiros nos receberam muito bem, temos muito que agradecer.” Enquanto se estabelecia no País, o casal assistia ao aprofundamento da crise venezuelana.

Venezuela tem cada vez menos recursos para mitigar crise

Mesmo com a alta do petróleo no mercado internacional, a estatal de petróleo PDVSA tem tido cada vez mais dificuldades para escoar sua produção, em virtude de dívidas adquiridas com fornecedores, agravadas pelas sanções impostas pelos Estados Unidos e o sucateamento de suas refinarias. Com isso, o governo tem cada vez menos recursos para tentar mitigar a crise e a escassez generalizada de alimentos e remédios tende a agravar-se cada vez mais, o que, por sua vez, deve aumentar o êxodo de venezuelanos nas fronteiras.

Só no Brasil, segundo o Ministério da Casa Civil, 48 mil venezuelanos tramitaram pedidos de refúgio até maio. “Até agora as medidas regionais de pressão na OEA (Organização dos Estados Americanos) e no Grupo de Lima não surtiram nenhum efeito prático e dificilmente surtirão”, disse o sociólogo Carlos Raúl Hernández. “Uma saída consensual e negociada é necessária na Venezuela e nisso o papel do Brasil como grande potência regional é essencial.”

O papel brasileiro como mediador, no entanto, depende em grande medida de quem será eleito em outubro, na avaliação do professor Guilherme Casarões, da FGV. “(Jair) Bolsonaro vem antagonizando o regime de Maduro a partir de uma dimensão ideológica, anticomunista, e deve posicionar o Brasil fortemente contra a Venezuela.”

Um candidato centrista, comoGeraldo Alckmin ou Marina Silva, deve manter a posição de crítica a Maduro a partir de plataformas regionais, como o Grupo de Lima, mas mantendo o entendimento de que o Brasil deve fazer parte de uma solução construtiva para a crise venezuelana, segundo o professor. “À esquerda, Ciro Gomes já declarou que o Brasil deve adotar papel conciliador, enquanto setores do PT e do PSOL seguem realizando uma defesa de Maduro, o que sugere que poderia haver uma aproximação caso esses partidos cheguem à Presidência.”

Assim como Hernández, Oliver Stuenkel, também da FGV, relativizou a eficácia da pressão imposta politicamente até agora. “As sanções políticas e individuais têm pouco impacto, e o Brasil só as imporia se tivesse uma decisão da ONU”, afirmou. “Os Estados Unidos também não imporão sanções econômicas ao petróleo às vésperas das eleições (americanas) de meio de mandato (do presidente Donald Trump). Basicamente, não há uma boa solução e não há o que fazer de fora para melhorar a situação.”

Informações do Estadão Conteúdo
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