Em janeiro de 2019, o Brasil dava o primeiro passo rumo à expansão do armamento da população. Um decreto do presidente Jair Bolsonaro, seguido de uma série de outras alterações nas normas, permitiu ao brasileiro não só comprar mais armas de fogo e munições, mas também ter acesso a um arsenal mais potente. Fuzis, por exemplo, antes restritos às forças de segurança, agora podem ser adquiridos por civis — em compras que podem ser feitas pela internet — para a prática de tiro esportivo e caça. A facilidade de acesso resultou num salto do arsenal.

Dois anos depois da primeira investida presidencial, o país tem 1,151 milhão de armas legais nas mãos de cidadãos; 65% mais do que o acervo ativo de dezembro de 2018, que era de 697 mil. Os dados são inéditos e foram obtidos via Lei de Acesso à Informação junto ao Exército e à Polícia Federal (PF), em uma parceria com os Institutos Igarapé e Sou da Paz.

O aumento mais expressivo, de 72%, se deu no registro da Polícia Federal, que contempla as licenças para pessoas físicas. O número passou de 346 mil armas de fogo, em 2018, para 595 mil, no fim de 2020. Nos caso os armamentos registrados pelo Exército, que atendem aos Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), a elevação, no mesmo período, foi de 58%: passou de 351 mil para 556 mil. Tanto num quanto noutro órgão, o salto não é explicado apenas pelas novas armas de fogo, mas também por registros expirados que foram renovados.

Medidas em sequência

Os dados analisados foram desmembrados e excluem o armamento em poder de empresas de segurança privada, clubes de tiro, policiais e integrantes das Forças Armadas, tornando o resultado o retrato do volume de armas na mão dos “cidadãos comuns”.

Até 2003, com o porte permitido no país, qualquer brasileiro com mais de 21 anos podia ir a bares, shoppings, parques e teatros com uma arma na cintura. Pistolas e revólveres eram vendidos em grandes lojas de departamento. Nas propagandas de jornais e revistas, anúncios de armas eram tão triviais quanto os de um eletrodoméstico.

Com a aprovação do Estatuto do Desarmamento, lei federal em vigor desde dezembro daquele ano, o porte foi proibido para civis, com exceções para poucas categorias profissionais, e a posse — o direito de ter a arma em casa ou no trabalho — passou a ter uma série de restrições. O estatuto desagradou os armamentistas, que defendem o direito à autodefesa e argumentam que os bandidos continuam com acesso livre às armas. Na outra ponta, aplaudiram a medida os entusiastas do desarmamento, que associam maior disponibilidade de arsenal ao aumento da violência.

Desde que assumiu, Bolsonaro fez um esforço sem precedentes entre seus antecessores para colocar em curso um de seus principais motes de campanha. Foram dez decretos presidenciais, 14 portarias de órgãos de governo, dois projetos de lei e uma resolução no sentido de flexibilizar as regras para a compra de armas e munições no Brasil.

Poucas pautas tiveram tanta reação do Congresso desde que Bolsonaro assumiu. No mesmo período, deputados e senadores apresentaram 77 projetos de decreto legislativo, tentativas de barrar o avanço armamentista, boa parte sem sucesso.

Na prática, há dois caminhos para se obter uma arma no Brasil: pela Polícia Federal ou pelo Exército. A PF concede um certificado que autoriza o proprietário a mantê-la em casa ou no local de trabalho, com o único objetivo de autodefesa, ou o porte, mais restrito. Já o Exército emite a autorização a um grupo restrito, os CACs, para coleção, prática de esportes e caça.

Tanto pela PF quanto pelo Exército, a validade do registro da arma passou de cinco para dez anos — quando o prazo termina, é necessário renovar a autorização. O rito para obter o certificado, em ambos os órgãos, exige que o requerente tenha mais de 25 anos, passe por exames psicotécnicos, escrito e de tiro, e não tenha antecedentes criminais. Pela PF, o trâmite costuma levar cerca de 40 dias, a depender do estado, enquanto pelo Exército demora algo em torno de seis meses.

Foi o cidadão comum quem mais se beneficiou com as mudanças na legislação. Antes, ele tinha de demonstrar à Polícia Federal as razões pelas quais precisava de uma arma, a chamada “efetiva necessidade”. Cabia a um delegado apenas julgar se as justificativas eram suficientes para liberar ou não a compra.

Agora, a declaração do requerente é presumida como verdadeira, e o delegado deve comprovar suas razões caso queira negar um pedido. As facilitações na lei alteraram ainda o potencial do armamento permitido. Calibres antes permitidos apenas às polícias ou às Forças Armadas hoje estão disponíveis para qualquer brasileiro ter em casa, como pistolas 9mm e carabinas semi-automáticas .40.

“O governo vem atuando em duas frente: flexibiliza a entrada de armas no mercado, e é preciso entender que o mercado legal é o mesmo do ilegal, porque a situação da legalidade da arma é transitória; e diminui as regras de controle, o que dificulta o entendimento do fluxo dessa arma para a ilegalidade. Para a segurança pública, é uma bomba relógio”, afirma a diretora de projetos do Instituto Igarapé, Melina Risso.

O Sul

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